sábado, 22 de maio de 2010

Certidões de vida

Trabalhei durante muitos anos num Cartório. Para ser mais precisa, por catorze anos no Tabelionato de Sapiranga. Foi onde peguei gosto pelo Direito. Foi também onde aprendi muitas coisas e dentre elas a analisar e observar documentos que, diariamente, passavam por minhas mãos. Documentos de todos os tipos, como certidões, carteiras de identidade, passaportes, títulos de eleitores, enfim, de tudo um pouco.
Desde aquela época, quando pego algum desses “papéis”, costumo examiná-lo detidamente, verificando datas, nomes, lugares, profissão, endereços. Ficava imaginando de que maneira o papel refletia a vida da pessoa que era sua dona. Hoje, não posso negar, ainda tenho esse hábito. Então, me coloco como uma espécie de espectadora à distância do evento documentado, imaginando os detalhes e pormenores e montando uma espécie de quebra cabeças mental.
Uma certidão de casamento, por exemplo, pode levantar indagações assim: como teria sido o dia do casamento? Estava frio, quente, ensolarado ou chovia? Talvez fosse primavera... E como era o vestido da noiva? O local tinha flores? Música? Imagino o nível de felicidade dos noivos. Trocaram olhares? O que sentiram, o que estariam esperando da vida, depois daquele momento? Seus sonhos se concretizaram? Continuaram exercendo a profissão que consta na certidão? Será que ainda compartilham o mesmo ideal? Para onde a vida os conduziu? Tiveram filhos, será? Se a certidão é de nascimento, bom começar pela hora do parto. Depois ver o dia, mês e ano do nascimento, o nome e profissão dos pais, quem são os avós. E aí, em que momento da vida dessas pessoas esta criança chegou? Foi desejada, esperada e amada? Teve boa saúde? Quem é hoje e como será amanhã? O que acontecia no mundo, naquele exato dia? De uma certidão de óbito surgem questões peculiares. Verificando a hora em que ocorreu o falecimento, é de se perguntar se alguém esteve junto com a pessoa nesse momento? Qual teria sido seu último pensamento? Faltou algo a ser feito? Algum desejo ou sonho não realizado? Sofreu ou despediu-se da vida serenamente? O que significou a perda desta pessoa para os que ficaram?
Quantas histórias podem estar contidas num simples pedaço de papel, cheio de dados informativos... Claro que muitas destas perguntas ficam sem resposta mesmo, apenas na base da imaginação. Muitos documentos se apresentam bem amarelados, denotando que as histórias dessas vidas já aconteceram há muito tempo. Alguns, parece que estiveram na guerra (dos farrapos...) de tão destruídos que estão. Outros são mais recentes, histórias ainda acontecendo. Tem os bem conservados, a demonstrar o valor que representam.
De tudo isso se percebe que não importa a idade dos papéis, as perguntas podem ser atuais. E podem ser formuladas a nós mesmos, enquanto também personagens de nossa própria história, ainda em tempo de ser vivida ou modificada.
A História da humanidade, afinal, é assim também, feita de documentos. Por isso sua importância. Na verdade, os documentos falam... É preciso, apenas, entendê-los.

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